NADA CORROMPE
Deixa fugir o o pensamento aonde for. Ele não sabe nem mesmo de si próprio. É ave que procura a liberdade fora de ti. Quer dissolver-se no nada. Deixa-o em seu destino. Tu és imutável e eterno em tua natureza. Nada te pode corromper.
Uma vez, no início de uma poesia, escrevi algo como “Eu pertencia a Vênus e Vênus me pertencia.”
Mas era só uma intuição. Agora sei: Um grão de matéria lá, em Vênus tem a minha tessitura e vice-versa. E isso, ninguém poderá tirar de você. Não é negociável. Nada lhe pode corromper. É o que É.
Às vezes, me pergunto que “vento” me trouxe aqui e me fez esse Lin , meu nome e identidade, profissão, etc ). Poderia tal vento ter me levado a um outro corpo. E eu seria você?
Isso é uma estupidez (no mínimo) , julgar o outro Você se julga a si mesmo e perde sua verdadeira identidade, aquela que também é a identidade eterna de Vênus.
Mas qual poesia se pode escrever a partir desse vazio criativo que nos faz em nossa verdadeira natureza? Não terá palavras, é certo. Nem limites, por impossível.
Tal poesia pertence à semente, que não vemos, mas que faz a flor. Há como senti-la sem nenhum sentimento, quando todos os registros deixaram a impregnação do cérebro.
Talvez seja possível ouvi-la como se ouve o estalar da lenha sendo consumida pelo fogo.
Ouvir a flor desabrochando é meditação. Nada a pode corromper.
Lin de Varga
É difícil explicar
(As palavras não alcançam),
que não existe nada lá.
.
Às vezes,percebo um lampejo,
mas é só uma estrela
cruzando a ausência de desejo.
Nao me culpem,
não posso mentir.
Eu constatei:
Não existe nada lá.
Nenhum resquício do meu eu,
que eu acreditava grande.
Tudo que era de dor feneceu.
Não existe nada lá.
Pode procurar,
nada vai encontrar.
Porque você quer que eu responda?
Eu não sei.
É no meu coração que está.
-É Deus?
-Acho que é.
-Você não sabe?
-É Deus,mas não sei explicar.
-E como é?Como Deus é?
-Ah, é um espaço infindo, de gloriosos pensamentos sem palavras, são anjos de energia pura com asas desaparecidas…
Não, não é isso.,Quero falar claramente:
Deus é como quando você acorda de manhã e respira,
ou quando toma água e a água é fresca;
É a volta da respiração, lá em cima.
.
É ouvir o ruido do milho crescendo,
ou o do bambú que cresce também.
É a alegria sem causa
e o torpor do sono;
é dormir sem sonhos,
profundamente.
Não é muita coisa…É isso.
É não maltratam a menininha,
nem o menininho,
nem em um olhar.
-Acho que olhar a menininha sem a maltratar,
isso é Deus a olhar.
Pois é, É a Consciência Pura esse olhar.
-Por que você voltou?.
-Daquele olhar?
-De estar lá.
– Não sei, tive a impressão de que você me chamava.
-É, eu também queria estar lá e olhar.
-Vamos juntos; eu vou voltar e você pode também ficar lá
– O que eu preciso fazer?
-Nada. Nem testemunhar.Você saberá.
Lin de Varga
De início, ela não se deu conta ao olhar o corpo do marido, inerte. Procurou dentro de si um sentimento e só encontrou uma estática de ressentimento; e era como um velho rádio que chiava. Em meio a essa surpresa de nada sentir, foi que constatou: Ele sorria!
Maurício, que acabara de morrer, sorria em seu descanso eterno. Puxara os dois cantos da boca no mais deslavado dos sorrisos.
Estavam no Hospital da Providência, no qual ele fora internado durante o último mês e Anastácia, chamada em casa, em uma de suas poucas fugidas a um descanso mais completo, com direito a banho e escovada de cabelos, correu de volta para confirmar que o marido falecera.
Pouco a pouco, olhando então sua face, verificava que a máscara transtornada de dor que vestia aquele rosto, havia desaparecido. E atrás dela surgira uma placidez clara e, mais que isso, um sorriso se apresentava sobre os lábios.
Seu irmão, Inácio, que lhe telefonara, estava ao seu lado. Quando do falecimento fora chamado pela enfermeira, não olhou o cunhado e correu a telefonar para a irmã, emocionado já com a perspectiva de pagar muitas dívidas de jogo com o dinheiro que lhe seria, certamente, liberado.
– Você está vendo? – Ela lhe perguntou, em um sussurro.
– O quê?
– Ele tá sorrindo…
_ Como assim?
-Olha…
E Inácio fixou o rosto imóvel do cunhado, que, iniciando o caminho à decomposição, perdia já seus últimos líquidos.
De fato, Maurício sorria. E não era um desses, rápidos, de cortesia, ou aqueles mais acentuados que se metem na boca para os familiares que devemos amar .Era um sorriso enorme, livre, vindo não se sabe de qual lugar; ou, por outra, do descanso eterno.
– Que coisa… – Soprou Inácio para a irmã.
Ela olhou para um lado e outro como se a pudessem ouvir em confissão:
– Como é que ele pode? Numa hora dessas? Filho…
-Chi! – E Inácio levantou um dedo, olhando ele próprio para os lados para ver se não havia alguma enfermeira por perto.
-O que qui vamos fazer?- Ela perguntou.
-Fazer?
-O que que as pessoas vão pensar? Rindo assim? Vão me zoar a vida inteira com essa porra.” O Inácio estava tão feliz de ficar livre da Anastácia, que sorria até !”
-Eu me lembro – começou Inácio –, quando eu era perito, fazendo um local de homicídio, o cara estava lá, mortinho, e tinha também um sorriso nos lábios. Me lembro do Delegado comentando que ele estava “aliviado”; acho que foi isso, aliviado…
_ Precisamos fazer alguma coisa, Inácio! – Exclamou Anastácia.
-Fazer o quê?
-Tirar essa porra de sorriso do rosto dele!
Inácio olhou em volta, o que já se tornava um hábito.
-Você tem alguma ideia de como fazer isso?
Ela refletiu alguns instantes.
-Vou ali nele e puxo a boca pr’á baixo.
-Não sei se é uma boa ideia, Anas. Vamos esperar. Olha, o cara acabou de morrer. Tem o trâmite todo do Hospital para liberar o corpo e a providência do enterro. Aí, a gente pensa. Só vão ver ele no velório.
Anastácia suspirou, como se pusesse um alívio no que sentia.
E, de fato, tomadas todas as providências, Anastácia viu-se com o marido já no cemitério da Boa Esperança, naquela noite mesmo, para o enterro no dia seguinte.
Maurício, no caixão aberto, usava o terno que sua mãe guardara dos tempos da Faculdade, com o qual ele recebera seu diploma de psicólogo, sob a beca alugada. Naquela véspera do enterro só se viam ali a própria Anastácia, Inácio, e a mãe de Maurício, dona Clotilde.
Enquanto a senhora ia pouco a pouco tornando o chorar uma repetição mais espaçada, Anastácia matutava. Chamou Inácio à parte.
-Pega a dona Clotilde e a leva até lá fora um instante.
-Pr’a quê?
– Eu vou tirar aquele sorriso do Maurício.
– Como eu vou convencer a velha a sair de perto do filho?
-Inventa uma coisa, Inácio. Não é brincadeira, não. Eu não vou passar por isso. As pessoas vão começar a chegar de manhã, aquela turma de psicanalistas vai me fazer sofrer o resto da vida.
-Acha que Freud explicaria esse sorriso? Brincou Inácio, sem perder a chance.
Ela o fixou, ferozmente.
-Tudo bem, tudo bem. Vou dar um jeito.
Logo, convencendo Dona Clotilde de que precisava ir ao banheiro antes que as pessoas começassem a chegar, Inácio levou-a à sala contígua e ao banheiro.
Anastácia aproximou-se do corpo do marido e, sem pudor, puxou-lhe os cantos dos lábios para baixo. A estrutura do rosto, de uma forma perturbadora, acompanhou o movimento de seus dedos. Maurício não mais sorria, e, magicamente, parecia agora horrorizado à fatalidade da morte. Sua boca havia descido a uma carranca de desprezo.
Ela suspirou aliviada e foi sentar-se em uma das cadeiras já postas para os que viriam.
Surpreendia-se mais tarde com a quantidade de pessoas que haviam acorrido ao velório. Não sabia, afinal, que o marido tinha um tão grande círculo de conhecimento. Eram muitos do ambiente de psicologia, ela os reconhecia. Outros, não sabia de onde vinham. Nenhum parente, a não ser Dona Clotilde, o que Anastácia, em seu íntimo, agradeceu.
Afinal, as horas passaram e o corpo do morto reclamava já o recolhimento necessário à terra. Foi chamada uma dessas pessoas que são pagas para fazer uma prece, apesar de toda a descrença em um Deus demonstrada por Maurício em vida. Veio um homem, de barbas tão profusas quanto as palavras que começou a despejar no ambiente. Todos estavam em silêncio absoluto.
E o rosto do morto aguardava com aquela estranha expressão de desdém por tudo, que a boca fortemente descida nos lados demonstrava.
Em meio a isso, entretanto, o não esperado, ou, por outra, o que Anastácia temia fosse testemunhado por todos, veio à tona. O rosto de Maurício iluminou-se em um sorriso que os lábios apresentaram, de repente, quando subiram os cantos da boca, inexoravelmente.
Olha, olha, ele está sorrindo! _ Gritou alguém, sem contenção. e todos fixaram o rosto do morto.
Uma onda avassaladora de murmúrios ergueu-se no aglomerado de pessoas e podia adivinharem-se risos sufocados, ou nervosas exclamações de espanto. Naquele momento ali, Anastácia teria ido à cova, de bom grado, na companhia do marido.
Somente três dias após, estavam ela e o irmão Inácio no escritório do advogado responsável pelo testamento de Maurício. Sentaram-se em frente à mesa do homem, tentando ambos uma postura de resguardo e respeito, mas só o que se percebia era a excitação dos olhos, iluminados.
– Muito bem – começou o Advogado -, eu sinto muito pelo que vou lhes dizer agora.
Os irmãos entreolharam-se.
Sim, doutor…
-Dona Anastácia, seu marido não deixou absolutamente nada. De fato, perdeu tudo em jogos. Quando faleceu, ainda devia muito dinheiro a várias pessoas.
– O quê? Maurício jogava? Não é possível! –
E ela lembrou-se, ato continuo, das longas ausências do marido em casa, e das quais jamais reclamara, agradecida até pela aproximação confortável do nadador famoso que morava no apartamento em frente ao seu.
-Porra meu, jogo! _ Exclamou Inácio, estupefato, ao lado.
-É – confirmou o Advogado.- Perdeu tudo.
-E a casa? – Balbuciou Anastácia.
-O apartamento, a sra, quer dizer.
E ela balançou a cabeça. Afirmativa e lentamente.
-Também se foi, lamento dizer, Dona Anastácia.
Olharam-se os dois irmãos. Inácio não pôde deixar de colocar um sorriso nos lábios.
-Por isso, ele estava sorrindo. – Concluiu.
LIN DE VARGA
Ela não saíra ainda e foi dar uma olhada através da janela do apartamento.
Vislumbrou o movimento da rua embaixo, o céu limpo em azul e o prédio defronte.
Neste,na janela logo em frente à sua, uma mulher – usando blusa vermelha – , levantou o braço direito, cuja mão empunhava um revólver e atirou contra a própria cabeça.
Ela que, atônita, vira a cena, colocou uma mão sobre a boca.Confusa quanto ao que fazer, correu porta a fora para o corredor.
Enquanto corria, uma estação noticiava no rádio da sala:
“Menos de uma semana após ter sido acusado de um desfalque milionário aos cofres públicos,no âmbito estadual, o Presidente da chamada Ordem da Honestidade,Sr.”A”,fez prova contundente de sua inocência e reiterou a imputação que fizera da autoria do desfalque à Secretária do Órgão, Maria Rouge, com documentos supostamente assinados por ela.
A prisão preventiva da Secretária já foi decretada, levando-se em conta a gravidade do crime e o número de pessoas que dependiam de suas pensões vinculadas ao Órgão.
Desde o início, a acusada mostrou-se bastante atingida pela acusação, com várias ocorrências de choros compulsivos e descontrolados,bem como cenas de desespero.
Chamou a atenção da mídia,o fato de Maria Rouge, sempre que flagrada pela imprensa, vestir-se de vermelho..”
O SALTO NO VAZIO
“No livro “Le saut dans le vide” (O salto no vazio), Jose Le Roy faz um estudo sobre a não dualidade dentro de vários filosofos da História.
Em dado momento, refere-se a Fichte, filósofo alemão que viveu entre 1762 e 1814. e o cita, por exemplo nessas afirmativas:
“(…)” O homem não pode criar-se um Deus, mas ele pode por si mesmo, como uma pura negação, aniquilar-se e, então, mergulhar em Deus.”(…)
“No fundamento de toda consciência, acha-se a Consciência imediata( O SER) (…)Tudo aquilo de que somos conscientes, não é a Consciência imediata”.
O que impressiona em tais afirmativas é que são usados aqui dois instrumentos muito comuns a Sri Nisargadatta Maharaj:
Primeiro:Ele se refere bastante à negação daquilo que não somos, verdadeiramente, para o dar-se conta da Consciência, aliás,único caminho para tanto.
Segundo: Coloca “consciência” com “c”minúsculo para a sensação de existir, e “Consciência”, com”C” maiúsculo,para a Consciência pura.
Vejam isso:Pergunta:” Então, como você sabe que está no estado supremo?”
Sri Nisargadatta: Porque estou nele. Ele é o único estado natural.
Pergunta: Você pode descrevê-lo?
Sri Nisargadatta:Só mediante a negação, como sem causa,independente,sem relação, indiviso,sem componentes,inabalável,inalcançavel mediante esforço“(pg.24, “Eu Sou Aquilo”).
Dois homens que viveram sobre a Terra com uma diferença de 150 anos, mais ou menos, e falavam da mesma coisa,infinitamente arraigada neles
LIN DE VARGA