PANDEMIA

                                         De qualquer forma, sempre fora para mim um grande prazer olhar a casa. As colunas laterais eram poderosas e os jardins em torno pareciam tomá-la nos braços, assim como se embala uma criança: carinhosamente.

                                         Em todas as noites que estive a observá-la e à sua gente, quando não chovia, a lua vinha como sempre mágica, ora cheia, ora crescendo, mas vinha como  pano de fundo ou proteção à casa que eu observava.

                                         Do meu apartamento pequeno, olhando a casa de frente, eu ia aprendendo como era fácil saber da vida dos outros e que o ato de viver, principalmente quando o levamos a efeito junto com outras pessoas, nem sempre é muito apreciável.

                                         Viviam nela um homem velho, dr. Caldeiras, eu soube, absorto a maior parte do tempo de sua vida na leitura de livros, como se, fora deles, não houvesse muita coisa que pudesse ser aproveitada;  duas jovens, Luana e Lara, com seus corpos ágeis e cuja eletricidade eu podia receber cá do meu apartamento, como um frêmito que havia nelas e em mim próprio. A doçura dos gestos, as brigas tolas entre si, que explodiam, às vezes, em gargalhadas ou em uma zanga que pouco demorava. A maior parte do tempo estavam ausentes, em escolas, supunha eu, ou em outras atividades.

                                      E havia, Berta, a empregada, arrumadeira eficaz ( eu sou testemunha), que estava sempre por lá, durante todo o dia, mas que desaparecia à noite, pelo que eu inventei em minha mente, para uma pequena casa nos fundos, ou um quarto, onde se recolheria às novelas na tv. Não sei porque as penso as empregadas assistindo à tv. Acho que é preconceito; e assistindo às novelas.

                                       “Edícula!”  Edícula é o nome para essas pequenas casas que ficam nos fundos de outras maiores e poderosas.

                                         Então, pude constatar que o homem velho era  o pai das meninas, e que não havia uma esposa  lá, pelo menos desde que eu me dispusera a tomar conta de suas vidas. Em pouco tempo eu podia discernir quaisquer conversas entre eles, mesmo que falassem baixo, através de minha atenção total e de uma leitura labial que a gente aprende com a prática. E, é claro, eu usava um poderoso binóculo.

                                          Berta  falava mais alto do que os demais,  e eu  gostava dela preferencialmente  aos outros. Era bem agradável, de vez em quando, apreciar as meninas em seus banhos, cujas chuveiradas eram deleite para mim. Por que se deixavam ver? Não sei. Talvez não tivessem noção de que alguém pudesse observá-las do predio pequeno em frente  e, nos dias úteis,  com as luzes apagadas em apartamentos de moradores que só retornavam a eles muito tarde após seus trabalhos. Desta escuridão, eu a tudo acompanhava.

                                           Mas o que interessava, de fato, ali naquela casa ? O cofre do dr.Calderas. Em mais de uma noite ou dia, mas não com frequência, pude vislumbrar, quando ele o abria, uma quantidade notável de notas verdes em seu interior.Eu sabia que havia muitos dólares naquela caixinha e sabia também que, em primeiro lugar, era preciso ter-se a senha dela.

                                                     É, é isso:  eu pretendia furtar toda aquele dinheiro do dr. Caldeiras e de suas filhas. Comprar a poderosa lupa que comprei foi um sacrifício ( o binóculo já não me satisfazia), mas o fiz, e ao constatar a aproximação que ela produzia através de minha janela, quando o doutor abria o cofre lá adiante, era algo impressionante. Eu pude saber todos os números da senha enquanto eram digitados, concomitantemente ao movimento da fechadura, assim como se  os estivesse lendo na mnha frente.

                                                     Então, vieram as máscaras. Eu ia dizer sorrateiramente, mas não, de forma contundente a pandemia  envolveu a Terra, assim tão amplamente, como quando um pássaro atravessa oceanos  pleno de liberdade. A pandemia veio para esconder os rostos das pessoas e, quem sabe, a vergonha de ter-se tanto falado e deixado que ela se fizesse tão poderosa.

                                              Desde que me surgira a idéia de subtrair os dólares no cofre da casa em frente, eu sabia que seria fácil fazê-lo, porque conhecia, religiosa e estudadamente, os hábitos de todos lá. Dr.Calderas ía todas as manhãs – pude verificá-lo –  à Biblioteca Municipal para umas pesquisas literárias, já que era avesso à impessoalidade da internet. Como eu, talvez ele só quisesse tocar nas folhas dos livros, para sentir que estava vivo. Algumas pessoas vivem nas histórias dos outros.

                                                     As meninas saíam, é claro, todos os dias, para o colégio. E Berta ia às compras cada quinta-feira de manhã e gastava nisso, cronometradamente, 3 horas. Lá pelo meio- dia  ela retornava, de forma infalivel, junto com a entrega do mercado no qual estivera, pois  não aguentava o peso das compras.

                                                     Claro que ficou resolvido que eu faria o trabalho em uma quinta-feira de manhã. Relutei durante um bom tempo, pois sabia da existência de cãmeras por todos os lados, dentro da área do jardim na casa e na rua em frente a ela.

                                                     E de repente, esse problema já não existia. Todos estavam usando máscaras, todos éramos iguais com os rostos cobertos. Eu entraria na casa ( a porta dos fundos ficava fechada, mas com a chave posta em um vaso de plantas ao lado), chegaria ao cofre, usaria os números da senha  gravados em minha memória, pegaria os dólares e sairia para a rua, invisível. Ou, por outra, escondido por uma máscara, em plena luz do dia.

                                                     Enquanto eu ia refletindo sobre o meu plano, que a pandemia viera acolher com seu manto de proteção, as mortes tornaram-se uma presença avassaladora. Como formigas pisadas pelos pés dos homens, as pessoas começaram a morrer em todas as partes sobre a Terra, e  muito próximo de nós, em nossa casa.

                                                     Nessa ocasião,não se falava em total recolhimento, assim, eu contava com a ausência de todos na casa às quntas-feiras, no horário em que Berta fazia as compras.  

                                                     Algo aconteceu, então. Subitamente, eu já não era aquele que planejara o furto. A pandemia me facilitaria o uso da máscara, mas não permitiria que eu me escondesse atrás dela, depois que o virus se  fosse. Aqueles dólares não teriam nenhum valor em um novo Mundo, porque um novo Mundo terá sido construído sobre  a morte de milhões de  pessoas.

                                                     Eu já não queria furtar nada, porque a ficção engendrada em meus neurônios tornara-se outra, uma que me permitia ser melhor. Com horror, constatei que muitos se aproveitavam da pandemia para usurpar vidas, em palavras e em atos diretos. Havia gente que manipulava os respiradores que salvariam vidas ante a presença da pandemia. Eu precisava ser melhor para merecer uma eventual sobrevivência.

                                                      Alguém diria, se pudesse ter sabido de minha intenção, algo como “ aquele ladrãozinho querendo ser honesto? ”. Eu não saberia responder a isso, mas eu era um outro.

                                                     Continuei apreciando a casa, o velho homem e suas filhas; e Berta, que falava tão alto. Mas digamos que fosse algo respeitoso. Só não consegui deixar  de espreitar as meninas   tomando aqueles banhos. Alguém diria também :” Ninguém é perfeito!”

Lin de Varga

DESPERTAR, QUEM SABE?

O maior despertar é o de constatar-se que se trata de uma peça, uma encenação.
A diferença entre uma peça com atores, é que não há a intenção de encenar.

Todos os diálogos estão lá, escritos em cada cérebro, e o roteiro vai sendo mostrado à medida que a peça se desenrola. Não pode ser refeito. Pode terminar.
É interessante: o roteiro só se faz escrito, depois da consumação. E, então, é claro, já foi vivido.

Você não pode jamais retornar uma página para corrigir uma palavra. As palavras são ditas, inexoravelmente.
Uma notável peça que não pode ser reinterpretada.

Tal constatação é o que se chama despertar. Se você disser “iluminação”, talvez ainda esteja atuando na peça, mas não sendo um ator, atua diretamente (e só pode fazê-lo assim), com seu ego.
Despertar é constatar-se tudo isso.
Não é nada cheio de luzes ou fogos de artifício. Trata-se de uma calma infinita, um vazio não criado, um “ser” sem ter vivido.

Há uma compaixão sem aprendizado, uma alegria sem causa, um nascer para a Eternidade.
E só aí você sabe a que veio.

Lin de varga

A PERGUNTA QUE SE FAZ É A SEGUINTE: POR QUE ESSA NOTÁVEL FICÇÃO?

Por quê, se é clara a notável abrangência disso que chamamos mente, o espaço infinito que constatamos nela como realidade, além da programação mental?

Só para argumentar, porque não se quer ferir o dogma de ninguém, nenhuma Igreja, nenhum líder religioso, nenhuma crença. Aliás, o que seria da gente  esmagada por lamaçais se não fosse uma crença qualquer?

Mas, como eu dizia, só para argumentar: E se nos foi dado só este VISLUMBRE rápido da magnitude do Universo? E se vamos, efetivamente, desaparecer para sempre com nossos corpos?

Isso não seria um milagre tão extraordinário como aqueles atribuídos a Jesus?

Vocês percebem? Para mim, o notável é ser só semente, crescer como crescem as árvores, sem uma ficção sequer e desaparecer na Eternidade

Citando Bob Adamson, “É uma ilusão que “você” exista – a entidade “você” é imaginada. A imaginação que “você” existe como algo ou alguém separado é a causa da aceitação ou rejeição de algo conhecido; é uma ilusão contando a história de sua própria decepção.”

Desculpem. Quando me dei conta da ficção que eu era como conteúdo mental, que o milagre estava em ser inteiro no agora, e senti então que amava a tudo e a todos com um amor que jamais antes adivinhara, estava livre e não havia caminho de retorno.

 

Lin de Varga

#vocejafoianalisado.com

“O Ajustamento da Dobradiça”, Amazon/Kindle.

PRESENÇA

Nós temos em nós um extraordinário tesouro de consciência e amor.
Esse tesouro é a Presença. Não a presença do indivíduo ao qual nos identificamos, muito frequentemente, mas uma Presença mais vasta, mais livre, já perfeita, já terminada.
Nós não somos separados dela; ela não é uma outra presença, uma outra consciência.
Ela é aquilo que nós, verdadeiramente, somos.
Mas , simplesmente, nós não lhe prestamos atenção.
Nós olhamos além, ao longe, nós a perdemos de vista .
No entanto,esta Presença é tão próxima que nada dela nos pode separar.
Não há sequer lugar para um caminho espiritual.
Esta presença é verdadeiramente terapêutica, além de tudo aquilo que nós podemos imaginar.
Aquilo que nós procuramos, nela nós achamos :
a alegria,
o conhecimento,
o amor,
o sentido…
Eu jamais teria pensado que uma tal plenitude fosse possível.
Como dizia Douglas Harding, aquilo nos é dado: ” it’s given.”
Esta Presença nos pede justamente um pouco de atenção .
uma atenção dirigida à fonte.

José Le Roy

Tradução Lin de Varga

É, ACHO QUE SABE O UNIVERSO

Às vezes, me pergunto , triste, o que o homem seria se não tivesse, afoito,
Inventado o tempo. Se tivesse aguardado para ouvir o silêncio das esferas – a lua – o sol – o verde -,o vento sussurrando nas quimeras.

Em verdade, o ser humano tem a capacidade, mas, de ordinário, não vive a vida real que existe e está além da intenção humana.
De fato, não há vida a ser vivida no âmbito a que o homem se impôs.
Vejo dentro de mim a sombra que está dentro de todas as pessoas; ninguém constata a energia que lhe caberia da energia total.

Se eu fecho os olhos e presto atenção ao meu interior, constato nele o infinito anterior a toda manifestação, antes mesmo de todas as galáxias (o que não quer dizer de meu aparato físico cerebral). A plena escuridão que lá constato é a natureza única de tudo.
As pessoas gostam da ideia da supra consciência inundada de luz; mas não; ela está inundada de vastidão. O que somos, intrinsecamente. Isto é ser “intrínseca-mente” e é a mais alta percepção. O resto, é imaginação.

Que todo o passado seja perdoado. Nem que sejamos nós mesmos a nos perdoar, “porque o sofrimento é o esquecimento de quem, realmente, somos: a própria vida. (1). E “Sua verdadeira natureza dissolve as fixações da mente.” (2). Saiba que na “solitude do nada o absoluto contempla sua beleza.”(3). E, finalmente, tudo que se diz parece ser pura redundância, porque “alma, ente ou ego são meras palavras.Não há entidade assim. Consciência é a única verdade. (4).
Não é maravilhoso saber-se Pura Consciência e estar, neste saber, em companhia desse pessoal aí?
(1) Jeff Foster.
(2) Gilbert Schultz.
(3) Rumi.
(4) Sri Ramana Maharshi.

Mas se me silencio, e o meu silêncio tem intenção, ouço o animal vagando em florestas profundas, e o galo que cocorica nas manhãs.
Mas se sou o silêncio, o último pássaro estanca seu vôo, e seu canto para, porque SOU, SOU, SOU.

Lin de Varga