FLUXO DE IN-CONSCIÊNCIA

Tudo pode o todo mundo. Só recolher o sobrolho, cruz sem deus aparente. Num olha o neurônio dá, o neurônio é a coisa mais dadivosa que já se fez dentro da eterna vida, Geny dadivosa mulher do beco da Sofía, ah Friburgo, eu, neurônios sossobra sem soçobra, sobre galáxias inteiras, vai e bate no buraco sem beira nem fundo, o neurônio sabe, como a pinça que colhe o vento, e lhe dá essa estranheza que tudo pode sem saber, porque e vai aonde for, falando que falando é só morrer – e fala novamente – vai que não retorna nada, tudo se espraiando tão regozijo que milhares de praias comíveis de mar em uma esteira que mazelas consegue dar segurança porque o medo não sabe que o mar quer só se saber vontade de refestelar na bacia que foi cunha de que Deus não tira a casa do soterramento vômito aberto de desespero e se vai conluiu que mataremos todos os abetos da Europa olham das praias e nada dizem vai que os neurônios cheguem para mostrar tudo se pode, é só concatenar, lhes dizer que procura bobeira, acho no vazio de tantos mestres falantes (como falam para explicar), de onde supõem os neurônios, era só a sopa, como é que se chama a sopa, a sopa, a sopa… primordial, a gente lembra, é só esperar o neurônio dá, mas fornica, fornica, se você, eu,aquele cara deu um tapa no rosto da criança, eu olhando e pensando eles mesmos me mostraram se eu mostrar, anônimo, gostoso, pude beber a gasolina sem pudor, o mar, no bar, igreja clara luzes notáveis, a mulher empoleirou e a comi, que sopro aquele na glande que hora que não sei porque não sabia que morria, e ia, ia, que eu queria tanto ir para poder voltar, e vai assim, foi, acabou, agora o neurônio retorna e eu criança que mal eu fiz a Deus!!!!!!, tanto esparadrapo, eu me pergunto, não pedi, me lançam assim, que coisa mas aquela o menino perdido no meio dos foguetes, na rua fazendo acrobacia, meio dia e quero morrer mas no beco, sob o poste, frescura de um bosque italiano, que não haja bosta para ser pisada, única sei de, porque tanta bostada, vômito, sapos que preciso vencer, saltar sobre,pulando na calçada da manhazinha, Monsenhor Miranda,como consegui dormir todo esse tempo, este tempo, sem sair do caracol, neurônios, por Deus, quem?

LIN DE VARGA

SER ÁRVORE

Então, cansado de ser gente, fui ser árvore.

Sempre achei que ser árvore seria algo transcendente, além da intenção humana, e de cujo lugar receber-se-ia a energia do Universo sem nenhuma barreira tola de pensamentos e emoções. Ah, eu quis tanto ser árvore que, por um milagre, ao despertar um dia, tornei-me uma delas.

Frondosa eu era, meus galhos tinham folhas vivamente verdes e flores nasciam sobre mim como benções do céu.

Mas, infelizmente, começaram os problemas. Preso ainda à minha intenção humana e a resquícios do meu antigo mecanismo cerebral, passei a fazer exigências descabidas à impossibilidade natural das árvores para determinadas demandas.

_ Podem dar uma podada! _ eu dizia, _ mas sem me machucar! (Isso era dito aos funcionários da Prefeitura que vinham fazer esse trabalho).

_ Ei, você! Está muito quente! Não podia jogar uma aguinha em mim? ( Isso para alguns incautos que se aproximavam.)

_ Não vão fazer xixi em mim! (Isso para os cães que vinham sempre aliviarem-se junto às minhas raízes. Ou, quando eu estava  com muita raiva: _ Não vai mijar em mim, não, cachorro sem mãe! Se você cagar, eu te mato, filho da puta!

_ Isso é tortura, não faz, não! ( Isso para quem gostava de riscar babaquices nas árvores, e até desenhar corações. Estes últimos, eram os  piores, porque as pessoas  achavam que transmitiam à minha pele,o amor que supostamente sentiam.Então, faziam com força e esmero.

E, por fim, as pessoas começaram a reclamar de mim.

_ Que árvore mais chata, a gente não pode passar que ela pede alguma coisa! “Aguinha, aguinha!!!”

_ Vou processar a Prefeitura que plantou ela aqui! Reclama da gente colocar um lixinho perto dela.

Mas suplício mesmo eram os passarinhos, beliscando a minha pele com seus pezinhos irrequietos ou cantando todo o tempo nos meus ouvidos!

Foi aí que descobri que para ser árvore, você tem que ser mesmo totalmente árvore, entregue a um estado que  só a natureza tem a capacidade de ter, e não levar contigo os miasmas todos de sua vida na época em que era humano. Eu teria que melhorar muito para ser uma árvore real, purificar totalmente  meu íntimo, o qual só então poderia dissolver-se  na plenitude da vida verdadeira.

Resolvi que era melhor retornar à minha condição de ser humano, tornar-me integral, humilde, e, aí sim, habilitar-me a ser árvore.

Então, surgiu um problema: como fazê-lo? Como voltar se já não tinha condições de usar de truques ou artimanhas como fazem os homens (alguns?) para  conseguirem aquilo que almejam?

Estava já alucinando na minha condição de meio homem meio árvore, quando vieram e me cortaram. Precisavam do espaço que eu ocupava para construírem um viaduto. “Que coisa engraçada”, ainda pensei antes de desaparecer,  “ fizeram a mesma coisa com a casa da minha família quando eu era criança!”

Sei que há uma pergunta que logo virá à mente de vocês a partir dessa história:

_ E aí, cara, você iluminou? Porque, olha só, se você foi árvore, quer dizer, fora do que a gente chama de intenção humana, tem que ter iluminado!

Sou obrigado a confessar que a única luz que eu senti naquela época era a de um poste na esquina que começava a me importunar às seis da noite e ia até às seis da manhã seguinte.

É isso.  Estes são os últimos resquícios do meu mecanismo cerebral, com os quais contei esta historia para vocês.  Me cortaram legal. Agora sou Eternidade. Mas dela não saberia o que dizer. E se dissesse, não estaria sendo eterno.                                                                                                                                                                                                                   LIN DE VARGA

A F E S T A

– Senti mesmo como se tivesse perdido meu corpo,
Dom Juan.
– E perdeu.
– Quer dizer, eu não tinha mesmo corpo?
– O que é que você acha?
– Bem, não sei. Só posso dizer-lhe o que eu sentia.
– É só isso que existe. Na realidade… o que você sentia.
(Carlos Castanëda e Dom Juan.)
Em “Os ensinamentos de Dom Juan”
Carlos Castanëda.

Carla, ao abrir a janela de manhã, sentiu que o frio lhe resfriava o nariz. Nenhum azul: somente o cinza, o branco e as árvores petrificadas.

Estremeceu encolhendo os ombros, enquanto apertava o quimono contra seu corpo magro. Teve, repentinamente, uma sensação de alegria enganando no peito, mas que se desfez tão logo o relógio gritou na cabeceira da cama. “Muito tarde”, exclamou baixinho. O quarto perdia sua intimidade no fio da janela aberta, perdia seus odores e quentura. Todavia, como ela própria, permanecia ainda morno.

O armário do banheiro estava aberto, os vidros alinhados nas prateleiras, e havia um perfume a rastejar pela frialdade dos ladrilhos. Carla foi até o grande espelho sem moldura que tomava toda a parede. Deixou cair o quimono. Ficou olhando-se nua na distância do reflexo, a mulher do outro lado a olhar para ela. Surpreendeu-se, então, fria, consciente de seus pés no chão. Abriu o chuveiro com um esticar de braço. Displicentemente, prendeu os cabelos à nuca, estudando, no ato, as axilas bem raspadas. Dilatou as narinas de modo sensual, para ver o efeito. Gostou de si mesma e se colocou sob a ducha. A boa sensação da água.

Deixou que a água a possuísse, que a fizesse de cristal. Largou-se efetivamente ali, sem tempo, sem desejo de ter tempo. Urinou, com calma, o líquido escorrendo-lhe pelas pernas, fazendo-se mais quente que a água. No banheiro, somente o som do chuveiro elétrico.

Relaxava, mexendo os ombros vagarosamente. A festa começou a surgir em sua mente, numa lembrança fugidia. Um filme nebuloso, antigo. De início, as pessoas e seus rostos pálidos; depois, as mãos das pessoas segurando copos. Explosão de risos, música calma.

Sentira-se bem, ao tomar o primeiro uísque, a bebida esquentando em seu íntimo. Vagueara entre as pessoas, os olhares, tentara degustá-las. Acenderam-lhe um cigarro; tragara forte.

Havia saído para a varanda, sem pressa, mas com uma sensação inconfundível na medula, um prazer transparente a cortar-lhe o peito. Seus músculos estavam afrouxados, como se ela dormisse. Não pronunciara, até aí, uma só palavra. Nesse momento, viu o rapaz. Na frente dele, meio a encobri-lo, uma planta vermelha, subindo de enorme vaso. Alguns
bancos espalhavam-se sob a noite, brancos. Ela se deixou em um deles. Refletiu que aquele rosto lhe era familiar. Como se o visse sempre, mas sem muita atenção. Baixara a fronte e, subindo o olhar, ele estava ali, muito junto, seu corpo esguio e presente.

– Você tem andado o tempo todo pela casa – Disse o rapaz. – Isso não é bom.
– Como?
– Eu não tirei os olhos de você. Gostaria que pudéssemos conversar.
– Conversar…
– Meu nome é Alex.
Ela o fixava, tendo a impressão de que não conseguia decifrar a cor de seus olhos. Talvez um tanto azuis, mas de uma tonalidade dispersa. Como se inalcançáveis. O rapaz olhava firme, perscrutando.
– Eu disse que…
– Não importa. Eu quero você. E você será minha.
– Não pretendo ser.
– Você será.
Carla desligou o chuveiro. Envolvida na toalha, sem enxugar-se, seguiu para o quarto.
Começou a se vestir lentamente, metendo-se na calcinha, na calça de brim, na blusa branca.
Não pôs sutiã. Em seguida, como se quisesse fugir de seus pensamentos, pegou a bolsa pequena, escovou os cabelos e correu pelas escadas, enquanto, atrás, a porta batia automaticamente.
A rua, cheia de sons e veículos, tocou-lhe a percepção. Os cheiros todos feriram-lhe as narinas. Um desejo rápido de voltar ao apartamento e estar só passou-lhe pela mente; entretanto, sem esforço, seguiu na direção de uma lanchonete.

A manteiga derretia no pão; o café estava forte. Devorou a refeição com prazer, quase esquecida de tudo em volta. Foi surda durante alguns instantes no simples ato de comer. Ao pagar a conta, todavia, a cidade engoliu-a de novo. As lembranças fugidias pressionavam levemente. Esteve no ponto quase por dez minutos, até que, com satisfação, viu-se sentada
em uma das poltronas do ônibus e abriu bons olhos para apreciar a vida.

Gostava daquilo: O ônibus deslizando, a cidade distante, o sentido de perspectiva e conforto. Lembrava-se, marcantemente, das têmporas do rapaz: transpiravam tensão. Não algo doentio, mas uma sensação de calidez, como se ele pudesse ousar, sem pudores. Como se tivesse poder sobre os outros. A tonalidade dispersa dos olhos, talvez azuis, irritava, por não permitir alcances. Oferecia insegurança e fascínio. Mãos de dedos longos, mãos brancas, de pianista. Mãos que haviam tocado seu corpo, que a haviam tocado por inteiro, com força. Ele tinha nariz adunco. “O nariz era adunco, mas bonito”, pensou. Deixara o banco na varanda um tanto sufocada, fora à mesa principal transbordante de salgados e bebidas e servira-se de uma boa nova dose de uísque. Pedira outro cigarro a qualquer pessoa e, sem atinar porquê, tentara evitar sentar-se no raio de visão do rapaz.
Sabia-o lá fora.
Circulara pela festa, entre as pessoas, divertindo-se na calculada solidão que imprimia a si mesma. Afinal, achou um canto mais escuro, no qual se meteu quase escondida. E permaneceu dispondo das expressões das pessoas, as caretas, os risos, na satisfação de fazer-se só. Ela poderia ter ficado todo o tempo naquele canto de festa, sem tempo.

Alex surgiu num relance, de repente. Colocou-se na frente dela; aproximou o corpo comprimindo-a. Beijou-lhe na boca um beijo quente e longo. O copo despencou da mão de Carla, o cigarro tombou, mas não houve qualquer som. Ele perscrutava já seu colo com lábios rápidos. Então, o vestido vermelho que sempre desejara e nunca tivera foi levantado e ela foi penetrada. Uma lâmina de dor e prazer machucando-lhe o íntimo. O movimento de ir e vir sufocando-a num crescente incomparável. O rapaz, ela, ambos explodindo no gozo.

A boca vazia de dentes do motorista sorria. Todos olhavam para ela. Chegara ao serviço. O motorista a conhecia da rotina do horário e punha nela aquele sorriso oco e silencioso, para avisar que haviam chegado. Carla caminhou por entre os bancos e caras.
Viu-se espremida entre muitos hálitos no elevador. Quando foi despejada no último andar, Renata, a amiga, estava aos seu lado.
– Querida, você estava ótima, ontem!
– Como?
– Ué, Carla, aquele “four de ases” foi demais! O Paulinho ficou louco!
Marta fixou a outra. O jogo de pôquer na noite anterior. Haviam jogado bastante. Ela fora para o apartamento já tarde, por volta das duas. E caíra na cama num sono profundo. De súbito, sentiu uma cólica descendo-lhe pelo abdômen.
Quando, à noitinha, voltava para casa, e descendo do ônibus, viu o rapaz da
tinturaria, de uniforme vermelho, firme sobre sua bicicleta. A figura familiar do entregador de roupas, sempre a entrar e a sair do edifício. Ele passou agilmente, sorrindo para Marta, com seus olhos de uma tonalidade dispersa, talvez azuis, e com uma certa tensão nas têmporas. Olhava, apesar de sua figura fugidia, cheio de segurança, perscrutando.

PANDEMIA

                                         De qualquer forma, sempre fora para mim um grande prazer olhar a casa. As colunas laterais eram poderosas e os jardins em torno pareciam tomá-la nos braços, assim como se embala uma criança: carinhosamente.

                                         Em todas as noites que estive a observá-la e à sua gente, quando não chovia, a lua vinha como sempre mágica, ora cheia, ora crescendo, mas vinha como  pano de fundo ou proteção à casa que eu observava.

                                         Do meu apartamento pequeno, olhando a casa de frente, eu ia aprendendo como era fácil saber da vida dos outros e que o ato de viver, principalmente quando o levamos a efeito junto com outras pessoas, nem sempre é muito apreciável.

                                         Viviam nela um homem velho, dr. Caldeiras, eu soube, absorto a maior parte do tempo de sua vida na leitura de livros, como se, fora deles, não houvesse muita coisa que pudesse ser aproveitada;  duas jovens, Luana e Lara, com seus corpos ágeis e cuja eletricidade eu podia receber cá do meu apartamento, como um frêmito que havia nelas e em mim próprio. A doçura dos gestos, as brigas tolas entre si, que explodiam, às vezes, em gargalhadas ou em uma zanga que pouco demorava. A maior parte do tempo estavam ausentes, em escolas, supunha eu, ou em outras atividades.

                                      E havia, Berta, a empregada, arrumadeira eficaz ( eu sou testemunha), que estava sempre por lá, durante todo o dia, mas que desaparecia à noite, pelo que eu inventei em minha mente, para uma pequena casa nos fundos, ou um quarto, onde se recolheria às novelas na tv. Não sei porque as penso as empregadas assistindo à tv. Acho que é preconceito; e assistindo às novelas.

                                       “Edícula!”  Edícula é o nome para essas pequenas casas que ficam nos fundos de outras maiores e poderosas.

                                         Então, pude constatar que o homem velho era  o pai das meninas, e que não havia uma esposa  lá, pelo menos desde que eu me dispusera a tomar conta de suas vidas. Em pouco tempo eu podia discernir quaisquer conversas entre eles, mesmo que falassem baixo, através de minha atenção total e de uma leitura labial que a gente aprende com a prática. E, é claro, eu usava um poderoso binóculo.

                                          Berta  falava mais alto do que os demais,  e eu  gostava dela preferencialmente  aos outros. Era bem agradável, de vez em quando, apreciar as meninas em seus banhos, cujas chuveiradas eram deleite para mim. Por que se deixavam ver? Não sei. Talvez não tivessem noção de que alguém pudesse observá-las do predio pequeno em frente  e, nos dias úteis,  com as luzes apagadas em apartamentos de moradores que só retornavam a eles muito tarde após seus trabalhos. Desta escuridão, eu a tudo acompanhava.

                                           Mas o que interessava, de fato, ali naquela casa ? O cofre do dr.Calderas. Em mais de uma noite ou dia, mas não com frequência, pude vislumbrar, quando ele o abria, uma quantidade notável de notas verdes em seu interior.Eu sabia que havia muitos dólares naquela caixinha e sabia também que, em primeiro lugar, era preciso ter-se a senha dela.

                                                     É, é isso:  eu pretendia furtar toda aquele dinheiro do dr. Caldeiras e de suas filhas. Comprar a poderosa lupa que comprei foi um sacrifício ( o binóculo já não me satisfazia), mas o fiz, e ao constatar a aproximação que ela produzia através de minha janela, quando o doutor abria o cofre lá adiante, era algo impressionante. Eu pude saber todos os números da senha enquanto eram digitados, concomitantemente ao movimento da fechadura, assim como se  os estivesse lendo na mnha frente.

                                                     Então, vieram as máscaras. Eu ia dizer sorrateiramente, mas não, de forma contundente a pandemia  envolveu a Terra, assim tão amplamente, como quando um pássaro atravessa oceanos  pleno de liberdade. A pandemia veio para esconder os rostos das pessoas e, quem sabe, a vergonha de ter-se tanto falado e deixado que ela se fizesse tão poderosa.

                                              Desde que me surgira a idéia de subtrair os dólares no cofre da casa em frente, eu sabia que seria fácil fazê-lo, porque conhecia, religiosa e estudadamente, os hábitos de todos lá. Dr.Calderas ía todas as manhãs – pude verificá-lo –  à Biblioteca Municipal para umas pesquisas literárias, já que era avesso à impessoalidade da internet. Como eu, talvez ele só quisesse tocar nas folhas dos livros, para sentir que estava vivo. Algumas pessoas vivem nas histórias dos outros.

                                                     As meninas saíam, é claro, todos os dias, para o colégio. E Berta ia às compras cada quinta-feira de manhã e gastava nisso, cronometradamente, 3 horas. Lá pelo meio- dia  ela retornava, de forma infalivel, junto com a entrega do mercado no qual estivera, pois  não aguentava o peso das compras.

                                                     Claro que ficou resolvido que eu faria o trabalho em uma quinta-feira de manhã. Relutei durante um bom tempo, pois sabia da existência de cãmeras por todos os lados, dentro da área do jardim na casa e na rua em frente a ela.

                                                     E de repente, esse problema já não existia. Todos estavam usando máscaras, todos éramos iguais com os rostos cobertos. Eu entraria na casa ( a porta dos fundos ficava fechada, mas com a chave posta em um vaso de plantas ao lado), chegaria ao cofre, usaria os números da senha  gravados em minha memória, pegaria os dólares e sairia para a rua, invisível. Ou, por outra, escondido por uma máscara, em plena luz do dia.

                                                     Enquanto eu ia refletindo sobre o meu plano, que a pandemia viera acolher com seu manto de proteção, as mortes tornaram-se uma presença avassaladora. Como formigas pisadas pelos pés dos homens, as pessoas começaram a morrer em todas as partes sobre a Terra, e  muito próximo de nós, em nossa casa.

                                                     Nessa ocasião,não se falava em total recolhimento, assim, eu contava com a ausência de todos na casa às quntas-feiras, no horário em que Berta fazia as compras.  

                                                     Algo aconteceu, então. Subitamente, eu já não era aquele que planejara o furto. A pandemia me facilitaria o uso da máscara, mas não permitiria que eu me escondesse atrás dela, depois que o virus se  fosse. Aqueles dólares não teriam nenhum valor em um novo Mundo, porque um novo Mundo terá sido construído sobre  a morte de milhões de  pessoas.

                                                     Eu já não queria furtar nada, porque a ficção engendrada em meus neurônios tornara-se outra, uma que me permitia ser melhor. Com horror, constatei que muitos se aproveitavam da pandemia para usurpar vidas, em palavras e em atos diretos. Havia gente que manipulava os respiradores que salvariam vidas ante a presença da pandemia. Eu precisava ser melhor para merecer uma eventual sobrevivência.

                                                      Alguém diria, se pudesse ter sabido de minha intenção, algo como “ aquele ladrãozinho querendo ser honesto? ”. Eu não saberia responder a isso, mas eu era um outro.

                                                     Continuei apreciando a casa, o velho homem e suas filhas; e Berta, que falava tão alto. Mas digamos que fosse algo respeitoso. Só não consegui deixar  de espreitar as meninas   tomando aqueles banhos. Alguém diria também :” Ninguém é perfeito!”

Lin de Varga

DESPERTAR, QUEM SABE?

O maior despertar é o de constatar-se que se trata de uma peça, uma encenação.
A diferença entre uma peça com atores, é que não há a intenção de encenar.

Todos os diálogos estão lá, escritos em cada cérebro, e o roteiro vai sendo mostrado à medida que a peça se desenrola. Não pode ser refeito. Pode terminar.
É interessante: o roteiro só se faz escrito, depois da consumação. E, então, é claro, já foi vivido.

Você não pode jamais retornar uma página para corrigir uma palavra. As palavras são ditas, inexoravelmente.
Uma notável peça que não pode ser reinterpretada.

Tal constatação é o que se chama despertar. Se você disser “iluminação”, talvez ainda esteja atuando na peça, mas não sendo um ator, atua diretamente (e só pode fazê-lo assim), com seu ego.
Despertar é constatar-se tudo isso.
Não é nada cheio de luzes ou fogos de artifício. Trata-se de uma calma infinita, um vazio não criado, um “ser” sem ter vivido.

Há uma compaixão sem aprendizado, uma alegria sem causa, um nascer para a Eternidade.
E só aí você sabe a que veio.

Lin de varga