O SORRISO DO MORTO
De início, ela não se deu conta ao olhar o corpo do marido, inerte. Procurou dentro de si um sentimento e só encontrou uma estática de ressentimento; e era como um velho rádio que chiava. Em meio a essa surpresa de nada sentir, foi que constatou: Ele sorria!
Maurício, que acabara de morrer, sorria em seu descanso eterno. Puxara os dois cantos da boca no mais deslavado dos sorrisos.
Estavam no Hospital da Providência, no qual ele fora internado durante o último mês e Anastácia, chamada em casa, em uma de suas poucas fugidas a um descanso mais completo, com direito a banho e escovada de cabelos, correu de volta para confirmar que o marido falecera.
Pouco a pouco, olhando então sua face, verificava que a máscara transtornada de dor que vestia aquele rosto, havia desaparecido. E atrás dela surgira uma placidez clara e, mais que isso, um sorriso se apresentava sobre os lábios.
Seu irmão, Inácio, que lhe telefonara, estava ao seu lado. Quando do falecimento fora chamado pela enfermeira, não olhou o cunhado e correu a telefonar para a irmã, emocionado já com a perspectiva de pagar muitas dívidas de jogo com o dinheiro que lhe seria, certamente, liberado.
– Você está vendo? – Ela lhe perguntou, em um sussurro.
– O quê?
– Ele tá sorrindo…
_ Como assim?
-Olha…
E Inácio fixou o rosto imóvel do cunhado, que, iniciando o caminho à decomposição, perdia já seus últimos líquidos.
De fato, Maurício sorria. E não era um desses, rápidos, de cortesia, ou aqueles mais acentuados que se metem na boca para os familiares que devemos amar .Era um sorriso enorme, livre, vindo não se sabe de qual lugar; ou, por outra, do descanso eterno.
– Que coisa… – Soprou Inácio para a irmã.
Ela olhou para um lado e outro como se a pudessem ouvir em confissão:
– Como é que ele pode? Numa hora dessas? Filho…
-Chi! – E Inácio levantou um dedo, olhando ele próprio para os lados para ver se não havia alguma enfermeira por perto.
-O que qui vamos fazer?- Ela perguntou.
-Fazer?
-O que que as pessoas vão pensar? Rindo assim? Vão me zoar a vida inteira com essa porra.” O Inácio estava tão feliz de ficar livre da Anastácia, que sorria até !”
-Eu me lembro – começou Inácio –, quando eu era perito, fazendo um local de homicídio, o cara estava lá, mortinho, e tinha também um sorriso nos lábios. Me lembro do Delegado comentando que ele estava “aliviado”; acho que foi isso, aliviado…
_ Precisamos fazer alguma coisa, Inácio! – Exclamou Anastácia.
-Fazer o quê?
-Tirar essa porra de sorriso do rosto dele!
Inácio olhou em volta, o que já se tornava um hábito.
-Você tem alguma ideia de como fazer isso?
Ela refletiu alguns instantes.
-Vou ali nele e puxo a boca pr’á baixo.
-Não sei se é uma boa ideia, Anas. Vamos esperar. Olha, o cara acabou de morrer. Tem o trâmite todo do Hospital para liberar o corpo e a providência do enterro. Aí, a gente pensa. Só vão ver ele no velório.
Anastácia suspirou, como se pusesse um alívio no que sentia.
E, de fato, tomadas todas as providências, Anastácia viu-se com o marido já no cemitério da Boa Esperança, naquela noite mesmo, para o enterro no dia seguinte.
Maurício, no caixão aberto, usava o terno que sua mãe guardara dos tempos da Faculdade, com o qual ele recebera seu diploma de psicólogo, sob a beca alugada. Naquela véspera do enterro só se viam ali a própria Anastácia, Inácio, e a mãe de Maurício, dona Clotilde.
Enquanto a senhora ia pouco a pouco tornando o chorar uma repetição mais espaçada, Anastácia matutava. Chamou Inácio à parte.
-Pega a dona Clotilde e a leva até lá fora um instante.
-Pr’a quê?
– Eu vou tirar aquele sorriso do Maurício.
– Como eu vou convencer a velha a sair de perto do filho?
-Inventa uma coisa, Inácio. Não é brincadeira, não. Eu não vou passar por isso. As pessoas vão começar a chegar de manhã, aquela turma de psicanalistas vai me fazer sofrer o resto da vida.
-Acha que Freud explicaria esse sorriso? Brincou Inácio, sem perder a chance.
Ela o fixou, ferozmente.
-Tudo bem, tudo bem. Vou dar um jeito.
Logo, convencendo Dona Clotilde de que precisava ir ao banheiro antes que as pessoas começassem a chegar, Inácio levou-a à sala contígua e ao banheiro.
Anastácia aproximou-se do corpo do marido e, sem pudor, puxou-lhe os cantos dos lábios para baixo. A estrutura do rosto, de uma forma perturbadora, acompanhou o movimento de seus dedos. Maurício não mais sorria, e, magicamente, parecia agora horrorizado à fatalidade da morte. Sua boca havia descido a uma carranca de desprezo.
Ela suspirou aliviada e foi sentar-se em uma das cadeiras já postas para os que viriam.
Surpreendia-se mais tarde com a quantidade de pessoas que haviam acorrido ao velório. Não sabia, afinal, que o marido tinha um tão grande círculo de conhecimento. Eram muitos do ambiente de psicologia, ela os reconhecia. Outros, não sabia de onde vinham. Nenhum parente, a não ser Dona Clotilde, o que Anastácia, em seu íntimo, agradeceu.
Afinal, as horas passaram e o corpo do morto reclamava já o recolhimento necessário à terra. Foi chamada uma dessas pessoas que são pagas para fazer uma prece, apesar de toda a descrença em um Deus demonstrada por Maurício em vida. Veio um homem, de barbas tão profusas quanto as palavras que começou a despejar no ambiente. Todos estavam em silêncio absoluto.
E o rosto do morto aguardava com aquela estranha expressão de desdém por tudo, que a boca fortemente descida nos lados demonstrava.
Em meio a isso, entretanto, o não esperado, ou, por outra, o que Anastácia temia fosse testemunhado por todos, veio à tona. O rosto de Maurício iluminou-se em um sorriso que os lábios apresentaram, de repente, quando subiram os cantos da boca, inexoravelmente.
Olha, olha, ele está sorrindo! _ Gritou alguém, sem contenção. e todos fixaram o rosto do morto.
Uma onda avassaladora de murmúrios ergueu-se no aglomerado de pessoas e podia adivinharem-se risos sufocados, ou nervosas exclamações de espanto. Naquele momento ali, Anastácia teria ido à cova, de bom grado, na companhia do marido.
Somente três dias após, estavam ela e o irmão Inácio no escritório do advogado responsável pelo testamento de Maurício. Sentaram-se em frente à mesa do homem, tentando ambos uma postura de resguardo e respeito, mas só o que se percebia era a excitação dos olhos, iluminados.
– Muito bem – começou o Advogado -, eu sinto muito pelo que vou lhes dizer agora.
Os irmãos entreolharam-se.
Sim, doutor…
-Dona Anastácia, seu marido não deixou absolutamente nada. De fato, perdeu tudo em jogos. Quando faleceu, ainda devia muito dinheiro a várias pessoas.
– O quê? Maurício jogava? Não é possível! –
E ela lembrou-se, ato continuo, das longas ausências do marido em casa, e das quais jamais reclamara, agradecida até pela aproximação confortável do nadador famoso que morava no apartamento em frente ao seu.
-Porra meu, jogo! _ Exclamou Inácio, estupefato, ao lado.
-É – confirmou o Advogado.- Perdeu tudo.
-E a casa? – Balbuciou Anastácia.
-O apartamento, a sra, quer dizer.
E ela balançou a cabeça. Afirmativa e lentamente.
-Também se foi, lamento dizer, Dona Anastácia.
Olharam-se os dois irmãos. Inácio não pôde deixar de colocar um sorriso nos lábios.
-Por isso, ele estava sorrindo. – Concluiu.
LIN DE VARGA