Oppure – Segundo discurso
Diz Oppure
-Uma gota retém dentro de si uma migalha de pão. A migalha está presa, é uma diminuta esponja. A gota a toma toda, como se quisesse, com efeito, comportá-la, moldá-la.É, neste momento, a função da gota proteger a migalha. A gota adapta-se à migalha e esta àquela, presa, submetida.
“A gota e a migalha estão sobre a cuba da pia da cozinha. Na cuba vêem-se também poças d’água antes jogadas pela torneira.Parecem lagos elevados que se retraem à presença ameaçadora do ralo.As poças vão diminuindo em tamanho, até que se transformam em gotas brilhantes, as quais são uma constelação no universo da pia da cozinha.Macro e micro.
“A gota arrisca-se por causa da migalha de pão. Permanece firme, contendo a migalha e não deixa que ela desapareça pelo ralo, apesar do fato de que as demais poças transformam-se em gotas brilhantes e,afinal, desaparecem.
“Luc Ferry diz que “ minha convicção é que os únicos seres pelos quais arriscaríamos a vida seriam outros humanos próximos de nós.É um fenômeno sobre o qual vale a pena refletir. Somos canais de transcendências verticais situadas acima das cabeças dos homens de transcendências horizontais encarnados na humanidade. Este é a meus olhos o fenômeno maior neste começo de século.”
“Arriscar a vida pelo outro, isto parece fundamental para ele, uma idéia que merece ser estudada. Você arriscaria a vida por uma planta? Por um cão? Isto poderia aproximar-se de um desprendimento ou de uma noção inteira do que significa estar neste universo. A gota arrisca-se,automaticamente, pela migalha de pão, porque esta iniciativa é inerente à ela, enquanto intenção de ser neste universo que nos atende.
-E eu pensando no por quê as pessoas arriscarem-se por outras… – Murmurou Terra.
-Eu olhava um cão… – Continuou Oppure. – Ele parecia perdido em uma estrada.Tinha muito medo de mim. Eu me aproximava e ele fugia…(A alma aprisionada dos animais!) Fiquei pensando, eu, ele, eu e ele ali, em momento único, dois seres no universo, sobre a terra, estão neste mesmo planeta, com o mesmo dilema:”O que é isso? Dois seres no Universo. Allan Watts, já o li dizer que “a diferença entre nós mesmos e os animais consiste possivelmente em terem eles apenas uma forma mais rudimentar de consciência individual, mas, por outro lado, um alto grau de sensibilidade com relação à corrente interminável da natureza.”(1) Ora veja só: “um alto grau de sensibilidade com relação à corrente interminável da natureza!” Não é formidável? E eles têem uma “forma mais rudimentar de consciência individual” Até Watts me surpreende…Eu poderia me arriscar pelo cão, ele por mim… Não,se optassem os homens de Luc Ferry, Não, eu poderia arriscar-me por ele, por que nós dois estamos nesta mesma galáxia e sobre isto não há nenhuma dúvida! Você pode duvidar da palavra de outra pessoa, mas não pode duvidar de que você e esta pessoa estão em um mesmo planeta em dado momento da existência,mesmos seres na mesma corrente que corre para leste!Você também não pode duvidar de que em tudo existe uma alma.A alma não pode ser exclusividade do homem. Ela visita tudo, o cão, a floresta,os rios.O universo está mergulhado na alma.O homem se civiliza e somente se arrisca por outro homem. A gota, sem hesitação, protege a migalha de pão.
-Tudo isto parece ter sentido se a perspectiva é a do Universo, não da civilização…Acho. – disse Terra.
– A vida tem um sentido continuou Oppure. – Não se pode defini-lo em palavras, nem por padrões de pensamento, mas ele existe. É como um sentimento, um júbilo que toma você quando se tem a consciência disso( ou a inconsciência)É o espírito que vive em todas coisas como essência e energia, nas pedras, nas florestas, nas águas, na carne que estremece o teu rosto. Esta mesma carne que veio, justamente, de uma energia primordial que banha tudo. Agradeça por tudo isso, Terra. Agradeça o milagre dos planetas soltos na corrente interminável.Vou lhe deixar,por enquanto, com as palavras lindas de Allan Watts.(2) Poucas vezes um homem foi tão feliz em descrever este milagre que é o ato de viver:
“À amada companhia das estrelas, da lua e do sol;
Ao oceano, ao ar e ao silêncio do espaço;
À selva, à geleira e ao deserto;
À terra macia, à água clara e ao fogo em minha lareira.
A certa cachoeira em plena floresta:
À chuva noturna que cai no telhado e às folhas grandes,
À relva que o vento agita, ao bulício dos pardais nos arbustos
E aos olhos que dão luz ao dia.”*
Agradeçamos, Terra
*Watts W Allan, “O Homem, a mulher e a natureza, Editora Record,,tradução de Celso Meyer, Rio de Janeiro- São Paulo, pg.19,Copyrigt(C) 1958 by Pantheon Books, Inc.