Oppure dos anjos começa a falar
Oppure dos Anjos começa a falar. Há um ouvinte: Alguém de nome Terra, que pode ser uma mulher ou um homem, uma árvore ou um rio, pode ser o planeta Terra, ele próprio, planeta, em muito boa posição para fazer perguntas ao Universo. Conversam em um bar…
– É preciso interferir no carma: não esperar que Deus o aprecie.Se carma existe e existe em um indeterminado sentido, assim há que ser.
– Organizar, quem sabe… – Aduziu Terra.
– Não há o que organizar na realidade direta. Tudo o que está disposto no espaço circundante, o está em lugares dispares, formando uma organização própria que tem a ver com lugar ocupado. Como um bosque ou uma floresta, tudo está em seu devido lugar não organizado. A percepção perfeita é a não barreira do que é certo. O pensamento é uma gota de cristal que se toca com os dedos. E, através deste pensamento, você percebe que vive em um ponto qualquer deste planeta. Esta, digamos, maravilhosa opção, nos foi dada um dia. Não sei se é, na verdade, uma opção, porque não houve escolha. Um dia, a gente é despejado do ventre aquecido da mulher, recebendo uma pancada de ar nos pulmões e, depois de muito gritar, está no Universo.
Oppure continua:
– Você já pensou nisso? Já refletiu a cerca? De repente, estar-se de pé, por assim dizer, sobre um planeta, em um sistema interplanetário, mergulhado em um Universo irremediavelmente sem fim. Por si só, o milagre está aí, não há porque procurá-lo em qualquer outro lugar. Está aí, quando você, com uma golfada de ar, inspira o universo inteiro. William James disse que “a nossa consciência desperta normal é apenas um tipo especial de consciência, enquanto ao seu redor, separadas pelos mais tênues véus existem numerosas outras formas de consciência.” O Eu é só um ponto de vista. Importa viver o virtual, que oferece o novo sem discussões. Nunca usar o usado.
“No início, era só a mente: uma intenção, algo a se desenvolver a partir de uma energia. É tão simples, que chega a incomodar. Mesmo se considerarmos que, em dado momento, alguma substância ínfima foi lançada do mar em solo “seco” e aí começou um processo de adaptação, ainda assim isso era só uma mente, ou a origem dela na intenção de manter-se por si mesma no Universo.
Uma voz destacou-se, lá fora, de entre as mesas:
– É claro que existe vida depois da morte. Se eu morrer agora, você continua vivendo não continua?
Oppure sinalizou um sorriso.
-Está vendo? – ele exclamou. – Você é sua escolha. A questão é de onde escolher. Há um personagem de Tolstoi que pergunta:”E se toda a minha vida tiver sido um erro?”
Apesar de não existirem escritores bons ou ruins, ele escreveu esta frase enxuta.
– Não existem escritores bons ou ruins?
– Quem escreve, escreve o que sente e só isso importa. Gosta quem quer gostar, lê quem quiser, gosta quem pode gostar. Tudo são idéias de outra pessoa: Joyce, Proust…Bobagem na presença do homem sobre a terra, pequena história do Universo. Era para o homem espelhar a magnitude de uma árvore. A mente, insisto sempre, é preciso ser tocada com se fosse uma gota. Como toda a cultura, isso de bons escritores, é tolice. A única coisa que, realmente, tem valor é a hora de defecar. Se você não fizer isso bem, nada mais terá valor em sua vida. Pense: Só importa que seu corpo funcione bem. No dia em que isso não acontece,tudo se interrompe. Você pode ler Camus ou uma revista de fofocas e não fará nenhuma diferença, se o seu intestino não segue adiante. Todo julgamento surge de um intestino comprometido. Todo “Sabe quem eu sou?” vem de um cara com prisão de ventre.
– Ou de um cagão de “merda”, não é não? – Exclamou Terra.
– Isso, os dois extremos. É preciso o caminho do desprendimento. Pergunte ao Universo: “Quem sou eu em sua substância?” Faça esta pergunta ,se possível, à exaustão.O silêncio lhe responderá. A verdade é silenciosa, ela não faz espalhafato. A mentira não precisa ser mostrada para ter algum sentido, se é que mentira poder ter um sentido, porque é preciso que ela seja dita. O mentiroso precisa de reconhecimento para ter validade.
Uma mulher passou junto à mesa. Oppure viu nela um rosto de tigresa. Ele e Terra olhavam-na com interesse. Como um anjo, seu corpo dissolveu-se antes que alcançasse o banheiro.
– Avião, heim? – excitou Terra.
– Vi um animal naquela mulher – disse Oppure. – Você está vendo só, tudo não é só uma questão de passagem pela vagina?
– É como a questão de “cagar”?
– Defecar, defecar! Não é que eu seja um purista. Quem inventou os palavrões sabia o que estava fazendo. Mas, porra, “cagar” é uma palavra feia…
– Purista… Eu estava pensando…Aquilo que você falou, que ninguém escreve bem ou mal.
Eu disse escritor bom ou ruim…
– É. E a questão do computador? Faz diferença?
– O computador só limpou a cesta de papéis e tirou o mérito de todos os Joyces da vida.
Dê graças a Deus pela gravidade.Você já pensou se todas as raízes sob a terra resolvessem vir à superfície?
– O que quer dizer? Às vezes, parece que você entra num assunto completamente diferente…. – disse Terra.
– Não há assuntos diferentes. Se todas as raízes subissem, duvido que Joyce tivesse qualquer importância – opinou Oppure.
– Assim, não há porque conversar – assinalou Terra.
– Não, meu amigo, aí é que há o porquê conversar, aí é que há. Todas as palavras ganham sua própria originalidade, sua sonoridade, como nos mantras. Nenhum computador pode tirar isso delas, nenhum. Não se trata de massa de informação, este som vem das cordas vocais, que, por sua vez, vêm de uma tessitura cósmica. O que se tece na eternidade …Este som que o corpo materializa, mas que lhe foi dado antes, antes mesmo de o primeiro verme ter tecido nossas entranhas. O som já estava, onipresente, no infinito, o corpo o capturou e pode devolvê-lo.Você já pensou como é importante devolver este som ao infinito em uma forma pura?
– Difícil – opinou Terra.
– O homem cria-se a si mesmo, tudo pode, portanto.Ele transforma seu destino, se quiser. Poucos têm noção disso, mas a possibilidade existe.